Sim votei em Marina Silva. Estamos
muito perto de saber o resultado das eleições e alguns já me disseram: você
perdeu seu voto. Se era para votar contra Dilma era melhor ter votado em Serra. Eu digo não. Não
perdi meu voto porque votei consciente em ter feito a melhor escolha e em ter
votado na melhor candidata para ser a Presidente do nosso País, mesmo sabendo
que essa não é a escolha da maioria dos brasileiros que ainda preferem votar no
candidato que o marketing, a globo, lhes diz para votar, a exemplo de Collor,
de Lula, de Dilma.
Posto hoje aqui um texto de José
Ribamar Bessa Freite, que recebi da minha amiga Maria Denize, por email, que
traça o perfil e a história de Marina Silva, de uma forma belíssima, que me
emocionei ao ler. Espero que gostem.
Desejo um ótimo final de domingo
e uma linda semana à todos/as, e que venha o resultado das eleições!!
A FOME DE MARINA
Há pouco, Caetano Veloso
descartou do seu horizonte eleitoral o presidente Lula da Silva, justificando:
"Lula é analfabeto". Por isso, o cantor baiano aderiu à candidatura
da senadora Marina da Silva , que tem diploma universitário. Agora, vem a
roqueira Rita Lee dizendo que nem assim vota em Marina para presidente,
"porque ela tem cara de quem está com fome".
Os Silva não têm saída: se correr o Caetano pega, se ficar a Rita come.
Tais declarações são espantosas, porque foram feitas não por pistoleiros
truculentos, mas por dois artistas refinados, sensíveis e contestadores, cujas
músicas nos embalam e nos ajudam a compreender a aventura da existência humana.
Num país dominado durante cinco séculos por bacharéis cevados, roliços e
enxudiosos, eles naturalizaram o canudo de papel e a banha como requisitos
indispensáveis ao exercício de governar, para o qual os Silva, por serem
iletrados e subnutridos, estariam despreparados.
Caetano Veloso e Rita Lee foram levianos, deselegantes e preconceituosos.
Ofenderam o povo brasileiro, que abriga, afinal, uma multidão de silvas
famélicos e desescolarizados.
De um lado, reforçam a ideia burra e cartorial de que o saber só existe se for
sacramentado pela escola e que tal saber é condição sine qua non para o
exercício do poder. De outro, pecam querendo nos fazer acreditar que quem está
com fome carece de qualidades para o exercício da representação política.
A rainha do rock, debochada, irreverente e crítica, a quem todos admiramos,
dessa vez pisou na bola. Feio."Venenosa! Êh êh êh êh êh!/ Erva venenosa,
êh êh êh êh êh!/ É pior do que cobra cascavel/ O seu veneno é cruel.../ Deus do
céu!/ Como ela é maldosa!".
Nenhum dos dois - nem Caetano, nem Rita - têm tutano para entender esse Brasil
profundo que os silvas representam.
A senadora Marina da Silva tem mesmo cara de quem está com fome? Ou se trata de
um preconceito da roqueira, que só vê desnutrição ali onde nós vemos uma beleza
frágil e sofrida de Frida Kahlo, com seu cabelo amarrado em um coque, seus
vestidos longos e seu inevitável xale? Talvez Rita Lee tenha razão em ver fome
na cara de Marina, mas se trata de uma fome plural, cuja geografia precisa ser
delineada. Se for fome, é fome de quê?
O mapa da fome
A primeira fome de Marina é, efetivamente, fome de comida, fome que roeu sua
infância de menina seringueira, quando comeu a macaxeira que o capiroto ralou.
Traz em seu rosto as marcas da pobreza, de uma fome crônica que nasceu com ela
na colocação de Breu Velho, dentro do Seringal Bagaço, no Acre.
Órfã da mãe ainda menina, acordava de madrugada, andava quilômetros para cortar
seringa, fazia roça, remava, carregava água, pescava e até caçava. Três de seus
irmãos não aguentaram e acabaram aumentando o alto índice de mortalidade
infantil.
Com seus 53 quilos atuais, a segunda fome de Marina é dos alimentos que, mesmo
agora, com salário de senadora, não pode usufruir: carne vermelha, frutos do
mar, lactose, condimentos e uma longa lista de uma rigorosa dieta prescrita
pelos médicos, em razão de doenças contraídas quando cortava seringa no meio da
floresta. Aos seis anos, ela teve o sangue contaminado por mercúrio. Contraiu
cinco malárias, três hepatites e uma leishmaniose.
A fome de conhecimentos é a terceira fome de Marina. Não havia escolas no
seringal. Ela adquiriu os saberes da floresta através da experiência e do mundo
mágico da oralidade. Quando contraiu hepatite, aos 16 anos, foi para a cidade
em busca de tratamento médico e aí mitigou o apetite por novos saberes nas
aulas do Mobral e no curso de Educação Integrada, onde aprendeu a ler e
escrever.
Fez os supletivos de 1º e 2º graus e depois o vestibular para o Curso de
História da Universidade Federal do Acre, trabalhando como empregada doméstica,
lavando roupa, cozinhando, faxinando.
Fome e sede de justiça: essa é sua quarta fome. Para saciá-la, militou nas
Comunidades Eclesiais de Base, na associação de moradores de seu bairro, no
movimento estudantil e sindical. Junto com Chico Mendes, fundou a CUT no Acre e
depois ajudou a construir o PT.
Exerceu dois mandatos de vereadora em Rio Branco , quando devolveu o dinheiro das
mordomias legais, mas escandalosas, forçando os demais vereadores a fazerem o
mesmo. Elegeu-se deputada estadual e depois senadora, também por dois mandatos,
defendendo os índios, os trabalhadores rurais e os povos da floresta.
Quem viveu da floresta, não quer que a floresta morra. A cidadania ambiental
faz parte da sua quinta fome. Ministra do Meio Ambiente, ela criou o Serviço
Florestal Brasileiro e o Fundo de Desenvolvimento para gerir as florestas e
estimular o manejo florestal.
Combateu, através do Ibama, as atividades predatórias. Reduziu, em três anos, o
desmatamento da Amazônia de 57%, com a apreensão de um milhão de metros cúbicos
de madeira, prisão de mais 700 criminosos ambientais, desmonte de mais de 1,5
mil empresas ilegais e inibição de 37 mil propriedades de grilagem.
Tudo vira bosta
Esse é o retrato das fomes de Marina da Silva que - na voz de Rita Lee - a
descredencia para o exercício da presidência da República porque, no frigir dos
ovos, "o ovo frito, o caviar e o cozido/ a buchada e o cabrito/ o cinzento
e o colorido/ a ditadura e o oprimido/ o prometido e não cumprido/ e o programa
do partido: tudo vira bosta".
Lendo a declaração da roqueira, é o caso de devolver-lhe a letra de outra
música - 'Se Manca' - dizendo a ela: "Nem sou Lacan/ pra te botar no divã/
e ouvir sua merda/ Se manca, neném!/ Gente mala a gente trata com desdém/ Se
manca, neném/ Não vem se achando bacana/ você é babaca".
Rita Lee é babaca? Claro que não, mas certamente cometeu uma babaquice. Numa de
suas músicas - 'Você vem' - ela faz autocrítica antecipada, confessando:
"Não entendo de política/ Juro que o Brasil não é mais chanchada/ Você
vem... e faz piada". Como ela é mutante, esperamos que faça um gesto
grandioso, um pedido de desculpas dirigido ao povo brasileiro, cantando:
"Desculpe o auê/ Eu não queria magoar você".
A mesma bala do preconceito disparada contra Marina atingiu também a ministra
Dilma Rousseff, em quem
Rita Lee também não vota porque, "ela tem cara de
professora de matemática e mete medo". Ah, Rita Lee conseguiu o milagre de
tornar a ministra Dilma menos antipática! Não usaria essa imagem, se tivesse
aprendido elevar uma fração a uma potência, em Manaus, com a professora
Mercedes Ponce de Leão, tão fofinha, ou com a nega Nathércia Menezes, tão
altaneira.
Deixa ver se eu entendi direito: Marina não serve porque tem cara de fome.
Dilma, porque mete mais medo que um exército de logaritmos, catetos,
hipotenusas, senos e co-senos. Serra, todos nós sabemos, tem cara de vampiro.
Sobra quem?
Se for para votar em quem tem cara de quem comeu (e gostou), vamos ressuscitar,
então, Paulo Salim Maluf ou Collor de Mello, que exalam saúde por todos os
dentes. Ou o Sarney, untuoso, com sua cara de ratazana bigoduda. Por que não
chamar o José Roberto Arruda, dono de um apetite voraz e de cuecões
multi-bolsos? Como diriam os franceses, "il péte de santé".
O banqueiro Daniel Dantas, bem escanhoado e já desalgemado, tem cara de quem se
alimenta bem. Essa é a elite bem nutrida do Brasil...
Rita Lee não se enganou: Marina tem a cara de fome do Brasil, mas isso não é
motivo para deixar de votar nela, porque essa é também a cara da resistência,
da luta da inteligência contra a brutalidade, do milagre da sobrevivência, o
que lhe dá autoridade e a credencia para o exercício de liderança em nosso
país.
Marina Silva, a cara da fome? Esse é um argumento convincente para votar nela.
Se eu tinha alguma dúvida, Rita Lee me convenceu definitivamente.
Por José Ribamar Bessa Freire
(Professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)
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