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sábado, 25 de setembro de 2010

DESIGUALDADE SOCIAL - Ralei Pereira Matos

Para a maioria das pessoas, a realidade social é assunto muito complicado, simples motivo para que não se lance nenhum olhar (nem mesmo de reprovação) às discrepâncias sociais que cercam a sociedade. Dessa forma, a desigualdade que dela provém, com objetos e fenômenos próprios, é algo que ainda não desperta a devida preocupação. Exceto quando dela se tira algum proveito.

As desigualdades sociais surgem, obrigatoriamente, no mundo do trabalho, onde se enfrentam os extremos antagônicos, que se voltam para interesses completamente distintos. Afirmamos ainda que elas se estendem e se ampliam quando o assistencialismo se traveste de políticas públicas, voltando-se à demandas setoriais, especificas, paliativas e de progressiva dependência.

É justamente pela falta de conscientização política, pela isenção com que se trata da questão social, pela nulidade na unidade social, que se permite que a desigualdade social se instale e se perpetue.

Falando sobre o que seja desigualdade social, há que se pensar que essa questão abrange quesitos mais amplos, tais como: raça - na diferenciação entre brancos e negros; gênero - quando o homem se sobrepõe à mulher e vice-versa; orientação sexual – quando a sexualidade é fator preponderante na formação do ser, ou de sua exclusão; religião – quando se percebe que diferenças de credo orientam a formação social e suas políticas; posições ideo-políticas – quando pensamentos e políticas públicas são voltados para currais eleitorais e vínculos partidários, ou sob a mesma, há a supressão destes, etc. Assim, é obrigatório dizer que todos esses fatores convergem para um único destino: o surgimento e o reforço da desigualdade social.

Analisando o que dissemos acima, percebemos que a desigualdade social surge já no “descobrimento” do Brasil, quando seus nativos se vêem espoliados em seus patrimônios (artísticos, culturais, políticos, sociais, e, a seu modo, econômicos). O histórico dessa invasão nos permite afirmar que essa desapropriação gerou uma condição de subjugação e dependência que nos caracteriza ainda hoje.

Isso posto, temos que a dominação ideológica é fundamental para encobrir o caráter dominante e alienador que se instala no Brasil e em todo mundo, com o que é o cerne da desigualdade social: o capitalismo.
                        
Baseamos nossa afirmativa na análise dos trechos a seguir:

“A história das sociedades, cuja estrutura produtiva baseia-se na apropriação privada dos meios de produção, pode ser descrita como a história das lutas de classes”. (1)

Essa afirmativa nos reporta à subalternidade da classe não portadora dos meios de produção que, acuada e sem conscientização política, deixa-se cair na não representatividade, acreditando-se mera co-adjuvante nos meios de produção capitalista. Aqui se dá o início da polarização social, com efeito favorável aos capitalistas.

“A crítica feita pelo marxismo, à propriedade privada dos meios de produção, dirige-se, antes de tudo, às suas consequências: a exploração da classe de produtores não possuidores, por parte de uma classe de proprietários, a limitação à liberdade e às potencialidades dos primeiros e à desumanização de que ambos são vítimas. Mas o domínio dos possuidores dos meio de produção não se restringe à esfera produtiva: a classe que detém o poder material é também a potência política e espiritual dominante”. (2)
                     
Percebe-se aqui o jogo tendencioso que desfavorece as massas, uma vez que, deixando-se subjugar, encontram-se vitimizadas pela opressão, pela imposição histórica de situações degradantes e constrangedoras, e, num conjugamento de forças, que vai do instinto de conservação ao ímpeto de destruição quando se submetem entre si mesmos dentro de seus círculos. Além disso, há que se considerar a dominação coercitiva que vai dos meios políticos, ao controle irrestrito da fé, que, não fugindo à regra épica, se torna objeto de mercantilização e pólo centralizador do poderio.

“Os regulamentos das corporações medievais opunham forte resistência à transformação do mestre em capitalista, ao limitar, por meio de rigorosos editos, o número máximo de oficiais e aprendizes que tinha o direito de empregar, e ao proibir-lhe a utilização de oficias em qualquer outro ofício que não fosse o seu. Além disso, era permitido aos comerciantes comprar qualquer tipo de mercadorias, menos a força de trabalho, uma vez que, para transformá-la em capital, o possuidor de dinheiro precisava encontrar no mercado o trabalhador livre, desde um duplo ponto de vista: primeiro, (...) tem que ser uma pessoa livre, que disponha (...) de sua força de trabalho como (...) sua própria mercadoria; segundo, tem que estar livre de todo, por completo, não deve ter outra mercadoria para vender (...)”. (2)

“Os meios de produção e de troca, sobre cuja base a burguesia se formou, foram criados na sociedade feudal. Ao alcançar um certo grau de desenvolvimento, esses meios de produção e de troca, as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava, toda a organização feudal de agricultura e da indústria, em uma palavra, as relações feudais de propriedade, deixaram de corresponder às forças produtivas já desenvolvidas. Freavam a produção em lugar de impulsioná-la. Era preciso romper essas travas, e elas foram rompidas. Em seu lugar estabeleceu-se a livre concorrência, com uma constituição social e política, aliada à dominação econômica e política da classe burguesa”. (2)

Nessas assertivas, encontramos o princípio da concorrência, que no universo capitalista, é o fator principal para o desprezo do ser, uma vez que o mesmo passa a ser visto como detentor de capacidade laborativa, mas não de consumo. Podemos afirmar, sem brecha para erros, que a classe trabalhadora não conquista sua “liberdade” senão para ser estimulada ao consumismo desenfreado, para que alimente o capitalismo, sendo bombardeado por aquilo que ele ainda não conhece, tampouco tem necessidade. Essa é a lógica que mantém viva uma engrenagem social: o capitalismo, que além de ser o vetor desencadeante das desigualdades, é a base estruturadora das sociedades, nas quais ele se dá. Além disso, é também a condição propícia para que seu detentor atraia para si, a capacidade dominadora em todas as esferas, que vai do poderio econômico, passa pelas decisões políticas e culmina na dominação religiosa.

Essa dominação se dá a partir da detenção dos meios de produção, que deságua na concentração de renda, e, para sua manutenção, vive do oferecimento de baixos salários e más condições de trabalho, que culminam no desemprego, fome, mortalidade, marginalidade, violência e tantas outras expressões que fomentam, evidenciam, mantém a desigualdade social. A partir daí, é que se instalam também as outras formas de dominação, todas elas originadas da econômica, quer seja a cultural, a ideológica, a política e toda forma de cerceamento ao que poderia prover as condições de cidadania.

São essas condições que permitem o surgimento da estratificação social, (produzida também pela estratificação profissional), o que, num pensamento lógico, contribui consideravelmente para as desigualdades.

Ora, quando o ser não tem acesso aos meios de escolarização, àquilo que poderia favorecer seus expoentes, ao que lhe poderia evidenciar sua capacidade intelectual e laborativa, é claro que ele estará à margem do que seja o processo de produção.

Isso o levará a vender sua força de trabalho a título de sobrevivência. Recebendo seu salário, que é o preço de sua força de trabalho, ele está em atividade subordinada à classe capitalista.

É por isso que ele se sujeita, conseqüentemente, a ser o “beneficiário” de políticas estatais, que são a forma mais elaborada para atenuar os efeitos negativos do capitalismo sobre a população:
Essas políticas, esses serviços, públicos ou privados, devem ser encarados como a devolução à classe trabalhadora, do produto por ela criado, mas não apropriado, sob uma nova roupagem: a de serviços ou benefícios sociais.

Porém, vistos assim, aparecem como sendo coisas doadas ou fornecidos ao trabalhador pelo poder político, como expressão da face humanitária do estado ou de uma empresa privada.
                        
Voltando ao início do texto, afirmamos que tal pensamento se dá em função do alheamento, da pouca importância que se dá, e da falta de politização brasileira. Enquanto alguns se preocupam com questões fúteis, há aqueles que se aproveitam disso. É nessa relação que se criam as camadas sociais, e, dentro dessas camadas, a polarização, os guetos, regidos por estatutos particulares: onde ser homem ou mulher, velho ou jovem, branco ou negro, heterossexual ou homossexual, representante deste ou daquele partido, daquela ou daquela religião, tal ou qual cidade ou bairro, é que são fatores determinantes da inserção ou exclusão social.
                        
É nessas desigualdades que os “agentes coletivos” e não apenas os “agentes políticos” devem intervir, com a consciência das possibilidades de enfrentamento do que seja a questão social e suas expressões.
                        
O capitalismo reforça a má distribuição de renda e é o fator causal, desencadeante, mantenedor e agravante das desigualdades sociais. Logicamente é por suas dinâmicas e contradições que ele, aliado ao Estado, busca legitimação através de uma pseudodemocracia, atuando junto às demandas das classes subalternas, fazendo com que aí, incidam políticas que teoricamente devem se ajustar às necessidades da população. Surgem então os desmandos, os abusos, os desvios e as condições propícias para o estabelecimento da dependência de programas que existem tão somente para promover “doações” daquilo que na verdade deveria ser obrigatoriedade do Estado, em franco combate às disparidades provocadas pelo capitalismo.
                        
Essas disparidades se refletem especialmente sobre a qualidade de vida da população, interferindo na expectativa de vida, contribuindo para a mortalidade infantil, o analfabetismo, enfim, o declínio social.
                        
As desigualdades são frutos das relações sociais, políticas, culturais e, mais sensivelmente, das relações econômicas impostas pelo capitalismo. Elas se constituem de um misto de todos esses fatores e são promovidas à sua máxima potência, quando da isenção do Estado, que se assume impotente, para não dizer inoperante, onde deveria ser sua atuação, ou se limitando a projetos e programas que simplesmente atenuam as desigualdades sociais, quando se voltam à condicionalidades.
                        
Essas condicionalidades podem se traduzir na presença do estado mínimo, que aumenta ainda mais as disparidades sociais, reforça a dependência econômica, e não promove o ser, em detrimento de condições propícias e adequadas à implementação de programas de desenvolvimento, políticas de bem estar social, organização e administração de serviços.  Dessa forma, encontramos o pensamento dado por Montaño (2009: 80): “a atenção à pobreza, (...) é mais uma ação de conter as sublevações sociais e não uma das formas dos serviços estatais assegurarem direitos aos mais espoliados (...). Vistas como inimigas pública da ordem, as massas empobrecidas são estrategicamente mantidas na exclusão, o que reforça sua impotência e desorganização. Com isto, o poder político dominante, além de impedir seu reconhecimento como classe e sua participação nos grupos institucionalizados, a mantém como alvo de promessa e demagogia populista”.

Pela lógica, encontraremos seres alienados, alijados dos poderes, conseqüentemente das decisões. Esse será o caminho para a exclusão social, raiz frondosa do que é a desigualdade social, fazendo com que o que era pobreza econômico-financeira se transforme em pobreza social e política.
                      
 CONCLUSÃO

“Proletários de todos os países, uni-vos”.

A desigualdade social, fruto de más políticas, de interesses escusos, de alheamento e desinteresse, nada mais é do que o reflexo dos seres com os quais ela se dá.
                        
Responsabilizar agentes púbicos pelo que é a sociedade brasileira, é, no mínimo, responsabilizarmos a nós mesmos. Tal responsabilidade nos recai pelo simples fato de também sermos agentes sociais. Em outras palavras, também somos responsáveis pelas desigualdades; se não pelo voto inconsciente e sem propósitos, será pela omissão e conivência silenciosa com que nos situamos face aos problemas sócio-institucionais.
                        
A desigualdade social também não passa apenas pelos tentáculos capitalistas, mas, ela se instala aí, quando nos deitamos às imposições do consumismo. Ela nasce de nossa indiferença, quando somos ingerentes com nosso poder de decisão, quando nos isentamos de nossas responsabilidades ou insistimos no “jeitinho” para driblar as leis ou contornar situações que poderiam nos desfavorecer.
                        
Assim, quando oferecemos respaldo à isenção do Estado, ou quando o favorecemos, dotando-o de um caráter social emergencial e sazonal, nós o qualificamos como provedor paternalista, confundindo o que seria seu papel e esquecendo-nos de qual seria nossa obrigação e sua obrigação. Dessa forma, a desigualdade social será aquilo que do estado nós o fizermos. De outra forma, ou se aceita o convite de Marx, ou se coloca a favor de uma máquina de destruir homens.


1- O Manifesto Comunista.
2- Um Toque de Clássicos.

Texto enviado, através de e-mail, por meu aluno: Ralei Pereira Matos - Aluno 4º Período Serviço Social - UNIPAC

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

XII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social


Com o tema Crise do Capital e Produção do Conhecimento na Realidade Brasileira: pesquisa para quê, para quem e como?, o XII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) será realizado no Rio de Janeiro (RJ), de 6 a 10 de dezembro de 2010, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E com uma novidade: representando o debate acumulado e a experiência adquirida nos últimos eventos máximos da pesquisa em serviço social, o Encontro vai inaugurar um novo contexto da pesquisa na área, com a consolidação da estratégia dos Grupos Temáticos de Pesquisa (GTPs).

Segundo a presidente da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e integrante da comissão organizadora Elaine Behring, o ENPESS 2010 será um dos maiores dos últimos anos, já que foram enviados 1720 trabalhos e inscritas 35 mesas coordenadas. "Por outro lado, a novidade dos GTPs já está mobilizando os pesquisadores da área. O Encontro vai incrementar e coletivizar a agenda da pesquisa, além de discutir outros temas relacionados à graduação e pós-graduação e a sucessão da ABEPSS em sua Assembléia bi-anual", destaca Behring.

As inscrições estão abertas e podem ser feitas até o dia do evento, por meio do site da ABEPSS (www.abepss.org.br/enpess2010). O pagamento da taxa de inscrição poderá ser feito via boleto bancário ou depósito. 

O tema deste ano tem como objetivo discutir os impactos da crise contemporânea do capital na produção do conhecimento, em um país marcado pela constituição de uma universidade heterônoma, ou seja, que historicamente reforçou as relações de dependência, no contexto de desenvolvimento desigual e combinado da economia capitalista. 

O XII ENPESS terá conferências, Colóquios – dos GTPs, Graduação, Pós-Graduação, Residência em Saúde – mesas coordenadas, sessões de comunicação oral e de apresentação de pôster. Os eixos articuladores do Encontro são os mesmos dos Grupos Temáticos de Pesquisa, ou seja: 

1. Trabalho, Questão Social e Serviço Social
2. Política Social e Serviço Social
3. Serviço Social: Fundamentos, Formação e Trabalho Profissional
4. Movimentos Sociais e Serviço Social
5. Questões Agrária, Urbana, Ambiental e Serviço Social
6. Classe Social, Gênero, Raça/Etnia, Geração, Diversidade Sexual e Serviço Social
7. Ética, Direitos e Serviço Social

Durante o evento, serão homenageados os Cem Anos de Noel Rosa, já que a UERJ se localiza em Vila Isabel, berço do samba e de Noel, que representa a resistência irreverente. Será homenageada também a Professora Nobuco Kameyama, que expressa a resistência nas suas escolhas teóricas, políticas, com grande contribuição para a formação de pesquisadores, para a história da ABEPSS e a organização da pesquisa no Serviço Social brasileiro.


Conselho Federal de Serviço Social - CFESS
Gestão Atitude Crítica para Avançar na Luta – 2008/2011
Comissão de Comunicação

Diogo Adjuto - JP/DF - 7823
Assessoria de Comunicação
comunicacao@cfess.org.br

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A pobreza da democracia brasileira.

Tempos de campanha eleitoral oferecem ocasião para fazermos reflexões críticas sobre o tipo de democracia que predomina entre nós. É prova de democracia o fato de que mais de cem milhões tenham que ir às urnas para escolher seus candidatos. Mas isso ainda não diz nada acerca da qualidade de nossa democracia. Ela é de uma pobreza espantosa ou, numa linguagem mais suave, é uma “democracia de baixa intensidade”na expressão do sociólogo português Boaventura de Souza Santos. Por que é pobre? Valho-lhe das palavras de uma cabeça brilhante que, por sua vasta obra, mereceria ser mais ouvida, Pedro Demo, de Brasília. Em sua Introdução à sociologia (2002) diz enfaticamene:”Nossa democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis “bonitas”, mas feitas sempre, em última instância, pela elite dominante para que a ela sirva do começo até o fim. Políitico é gente que se caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco, fazer negociatas, empregar parentes e apaniquados, enriquecer-se às custas dos cofres públicos e entrar no mercado por cima…Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria negação”(p.330.333). 

Essa descrição não é caricata, salvo as poucas exceções. É o que se constata dia a dia e pode ser visto pela TV e lido nos jornais: escândalos da depredação do bem público com cifras que sobem aos milhões e milhões. A impunidade grassa porque crime é coisa de pobre; o assalto criminoso aos recursos públicos é esperteza e “privilégio” de quem chegou lá, à fonte do poder. Entende-se porque, em contexto capitalista como o nosso, a democracia primeiro atende os que estão na opoulência ou têm capacidade de pressão e somente depois pensa na população atendida com políticas pobres. Os corruptos acabaram por corromper também muitos do povo. Bem observou Capistrano de Abreu em carta de l924:”Nenhum método de governo pode servir, tratando-se de povo tão visceralmente corrupto com o nosso”.

Na nossa democracia, o povo não se sente representado nos eleitos; depois de uns meses nem mais sabe em quem votou. Por isso não está habituado a acompanhá-lo e a fazer-lhe cobranças. Ao lado da pobreza material é condenado à pobreza política, mantida pelas elites. Pobreza política é o pobre não saber as razões de sua pobreza, é acreditar que os poblemas dos pobres podem ser resolvidos sem os pobres, só pelo assistencialismo estatal ou pelo clientelismo populista. Com isso, se aborta o potencial mobilizador do povo organizado que pode exigir mudanças, temidas pela classe política, e reclamar políticas públicas que atendam a suas demandas e direitos.

Mas sejamos justos. Depois das ditaduras milatares, surgiram em toda América Latina democracias de cunho social e popular que vieram de baixo e por isso fazem políticas para os de baixo, elevando seu nivel. A macroeconomia capitalista segue mas tem que negociar. A rede de movimentos sociais, especialmente o MST, colocam o Estado sob pressão e sob controle, dando sinais de que a democracia pode melhorar.

Vejo dois pontos básicos a serem conquistados: primeiro, a proposta de Boaventura de Souza Santos que é de forjar uma “democracia sem fim”, em todos os campos, especialmente na economia, pois aquí se instalou a ditadura dos patrões. Ela é mais que delegatícia, é um movimento aberto de participação, a mais ampla possivel.

O segundo, é uma idéia que defendo há anos: a democracia não pode ser antropocêntrica, só pensando nos humanos como se vivêssemos nas nuvens e sozinhos, sem nos darmos conta de que comemos, bebemos, respiramos e estamos mergulhados na natureza da qual dependemos. Então, importa articular os dois contratos, o social com o natural; incluir a natureza, as águas as florestas, os solos, os animais como novos cidadãos que têm direitos de existir conosco, especialmente os direitos da Mãe Terra. Trata-se então de uma democracia sócio-cósmica, na qual os seres humanos convivem com os demais seres, incluindo-os e não lhes fazendo mal. O PT do Acre nos mostrou que isso é possível ao articular cidadania com florestania, quer dizer, a floresta respeitada e incluida no bem viver dos povos da floresta.

Utopia? Sim, no seu melhor sentido, mostrando o rumo para onde devemos caminhar daqui para frente, dadas as mudanças ocorridas no planeta e no encontro inevitável dos povos.
Leonardo Boff 

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Uma enorme lição de ensinar!

A ARTE DE PRODUZIR FOME - RUBEM ALVES

Adélia Prado me ensina pedagogia. Diz ela: "Não quero faca nem queijo; quero é fome". O comer não começa com o queijo. O comer começa na fome de comer queijo. Se não tenho fome é inútil ter queijo. Mas se tenho fome de queijo e não tenho queijo, eu dou um jeito de arranjar um queijo...

Sugeri, faz muitos anos, que, para se entrar numa escola, alunos e professores deveriam passar por uma cozinha. Os cozinheiros bem que podem dar lições aos professores. Foi na cozinha que a Babette e a Tita realizaram suas feitiçarias... Se vocês, por acaso, ainda não as conhecem, tratem de conhecê-las: a Babette, no filme "A Festa de Babette", e a Tita, em "Como Água para Chocolate". Babette e Tita, feiticeiras, sabiam que os banquetes não começam com a comida que se serve. Eles se iniciam com a fome. A verdadeira cozinheira é aquela que sabe a arte de produzir fome...

Quando vivi nos Estados Unidos, minha família e eu visitávamos, vez por outra, uma parenta distante, nascida na Alemanha. Seus hábitos germânicos eram rígidos e implacáveis.
Não admitia que uma criança se recusasse a comer a comida que era servida. Meus dois filhos, meninos, movidos pelo medo, comiam em silêncio. Mas eu me lembro de uma vez em que, voltando para casa, foi preciso parar o carro para que vomitassem. Sem fome, o corpo se recusa a comer. Forçado, ele vomita.

Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim "affetare", quer dizer "ir atrás". É o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado.

Eu era menino. Ao lado da pequena casa onde morava, havia uma casa com um pomar enorme que eu devorava com os olhos, olhando sobre o muro. Pois aconteceu que uma árvore cujos galhos chegavam a dois metros do muro se cobriu de frutinhas que eu não conhecia.
Eram pequenas, redondas, vermelhas, brilhantes. A simples visão daquelas frutinhas vermelhas provocou o meu desejo. Eu queria comê-las.

E foi então que, provocada pelo meu desejo, minha máquina de pensar se pôs a funcionar. Anote isso: o pensamento é a ponte que o corpo constrói a fim de chegar ao objeto do seu desejo.

Se eu não tivesse visto e desejado as ditas frutinhas, minha máquina de pensar teria permanecido parada. Imagine se a vizinha, ao ver os meus olhos desejantes sobre o muro, com dó de mim, tivesse me dado um punhado das ditas frutinhas, as pitangas. Nesse caso, também minha máquina de pensar não teria funcionado. Meu desejo teria se realizado por meio de um atalho, sem que eu tivesse tido necessidade de pensar. Anote isso também: se o desejo for satisfeito, a máquina de pensar não pensa. Assim, realizando-se o desejo, o pensamento não acontece. A maneira mais fácil de abortar o pensamento é realizando o desejo. Esse é o pecado de muitos pais e professores que ensinam as respostas antes que tivesse havido perguntas.

Provocada pelo meu desejo, minha máquina de pensar me fez uma primeira sugestão, criminosa. "Pule o muro à noite e roube as pitangas." Furto, fruto, tão próximos... Sim, de fato era uma solução racional. O furto me levaria ao fruto desejado. Mas havia um senão: o medo. E se eu fosse pilhado no momento do meu furto? Assim, rejeitei o pensamento criminoso, pelo seu perigo.

Mas o desejo continuou e minha máquina de pensar tratou de encontrar outra solução: "Construa uma maquineta de roubar pitangas". McLuhan nos ensinou que todos os meios técnicos são extensões do corpo. Bicicletas são extensões das pernas, óculos são extensões dos olhos, facas são extensões das unhas.

Uma maquineta de roubar pitangas teria de ser uma extensão do braço. Um braço comprido, com cerca de dois metros. Peguei um pedaço de bambu. Mas um braço comprido de bambu, sem uma mão, seria inútil: as pitangas cairiam.

Achei uma lata de massa de tomates vazia. Amarrei-a com um arame na ponta do bambu. E lhe fiz um dente, que funcionasse como um dedo que segura a fruta. Feita a minha máquina, apanhei todas as pitangas que quis e satisfiz meu desejo. Anote isso também: conhecimentos são extensões do corpo para a realização do desejo.

Imagine agora se eu, mudando-me para um apartamento no Rio de Janeiro, tivesse a idéia de ensinar ao menino meu vizinho a arte de fabricar maquinetas de roubar pitangas. Ele me olharia com desinteresse e pensaria que eu estava louco. No prédio, não havia pitangas para serem roubadas. A cabeça não pensa aquilo que o coração não pede. E anote isso também: conhecimentos que não são nascidos do desejo são como uma maravilhosa cozinha na casa de um homem que sofre de anorexia. Homem sem fome: o fogão nunca será aceso. O banquete nunca será servido.

Dizia Miguel de Unamuno: "Saber por saber: isso é inumano..." A tarefa do professor é a mesma da cozinheira: antes de dar faca e queijo ao aluno, provocar a fome... Se ele tiver fome, mesmo que não haja queijo, ele acabará por fazer uma maquineta de roubá-los. Toda tese acadêmica deveria ser isso: uma maquineta de roubar o objeto que se deseja...

Fonte: http://rubemalves.wordpress.com/category/a-arte-de-produzir-fome

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