Se
milhares de jovens e adultos brasileiros e estrangeiros sobrevivem, hoje, às condições
de extrema pobreza em que nasceram, devem isso em especial à dra. Zilda Arns.
Conheci-a através de seu irmão, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, hoje
arcebispo emérito de São Paulo. Trazia sempre nos lábios um sorriso tímido, a
fala mansa, suave, e, apesar dos gestos contidos, manifestava profunda firmeza
de caráter, clareza de objetivos e fé cristã.
Na
virada das décadas 1970-1980, o Brasil se redemocratizava e a sociedade civil
se reorganizava. A Igreja Católica, através da CNBB (Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil), ampliou o leque de suas pastorais específicas e adicionou -
à da terra, dos migrantes, dos operários, da juventude etc. -, a Pastoral da
Criança, proposta por Zilda Arns, médica pediatra especializada em saúde
pública.
Fundada
em 1983, hoje a Pastoral da Criança atua em 20 países, principalmente junto a
famílias de baixa renda, onde acompanha as gestantes, os partos, o
desenvolvimento das crianças de zero a 6 anos de idade.
Inspirada
na metodologia de Paulo Freire – os pobres como sujeitos sociais e políticos de
sua emancipação da pobreza – a Pastoral da Criança criou uma extensa rede de
voluntários a partir da capacitação dos pais das crianças atendidas. O
beneficiário de hoje é o agente multiplicador de amanhã, responsável por
acompanhar de 10 a
15 famílias vizinhas prestes a ter bebê, orientando-as em ações básicas de
saúde, vacinas, cuidados pré e pós natais, nutrição, educação e cidadania
Em
2004, Zilda Arns criou a Pastoral da Pessoa Idosa, hoje integrada por milhares
de homens e mulheres com mais de 60 anos de idade, rejuvenescidos por
descobrirem que velhice não é doença nem ociosa espera da morte.
Alcance do trabalho
No
Brasil, já foram atendidas pela Pastoral da Criança, em 27 anos de atuação, 1,6
milhão de crianças e 1,2 milhão de famílias pobres, em 4.063 municípios, graças
à dedicação de 260 mil voluntários, dos quais 141 mil são líderes que vivem em
comunidades pobres. Zilda Arns fez, sim, o milagre da multiplicação dos pães,
ou seja, da vida. Aonde a Pastoral da Criança chega, no primeiro ano o índice
de mortalidade infantil cai em torno de 20%.
Estima-se
que, no exterior, a Pastoral da Criança já salvou a vida de ao menos 200 mil
bebês. Na América Latina ela se faz presente no Paraguai, Argentina, Honduras,
México, Venezuela, Bolívia, Uruguai, Peru, Panamá, República Dominicana,
Colômbia, Guatemala e também no Haiti, onde sua fundadora encontrou a morte –
em plena trincheira de trabalho para salvar vidas - a 12 de janeiro último, em
decorrência do terremoto que arruinou aquele país do Caribe. Na África, a
Pastoral atua na Guiné-Bissau, Moçambique e Guiné; e na Ásia, nas Filipinas e
Timor Leste.
Fome Zero
Trabalhei
com Zilda Arns em 2003/2004, quando a Pastoral da Criança se fez parceira, de
primeira hora, do Fome Zero. Ela tinha muito a nos ensinar. Crianças nascidas
em situação de extrema pobreza são salvas da desnutrição e da diarreia graças a
medidas simples, como a pesagem periódica de bebês, o soro caseiro e a farinha
multimistura, preparada com sementes e “restos” de alimentos, como talos de
verduras, cascas de frutas e ovos. O custo criança/mês é inferior a R$ 1,7.
Graças
à intensa mobilização suscitada pelo apelo de combate à desnutrição, o Fome
Zero recebia inúmeras doações. Certo dia ligou um empresário de Birigui (SP),
disposto a doar 100 mil pares de calçados para crianças. E, como tantos
doadores, queria visibilizar o gesto em Brasília, em vez de destiná-la
diretamente aos municípios priorizados pelo programa. Logramos convencê-lo do
contrário.
Roberto
Guimarães, que trabalhava com Oded Grajew e comigo no gabinete de Mobilização
Social da Presidência da República, ficou encarregado de monitorar a operação.
Qualificado em consultoria de processos, contatou os Correios, que se
prontificaram a despachar os sapatos. Mas... a que endereços?
Sugeri
que recorresse à Pastoral da Criança. Duas semanas depois ela nos enviou nome e
sobrenome de 100 mil crianças, os respectivos endereços e – acreditem! - o
número do pezinho de cada uma, especificando se era do sexo masculino ou
feminino. Ficamos admirados frente a tamanha capilaridade e eficiência do
movimento criado por Zilda Arns. Roberto Guimarães comentou que nem o acervo de
presentes de Papai Noel era tão organizado...
No
lançamento do Fome Zero, em 2003, Zilda Arns discordou de se exigir dos
beneficiários comprovantes de gastos em alimentos, de modo a garantir que o
dinheiro não se destinasse a outras compras. Oded Grajew e eu a apoiamos,
concordamos que apresentar comprovantes não era relevante, valia apenas como
forma de se verificar resultados. Haveria que confiar na palavra dos
beneficiários.
Em
março de 2004, o governo decidiu esvaziar o Fome Zero, que tinha caráter
emancipatório, e introduzir o Bolsa Família, de caráter compensatório. Zilda
Arns, preocupada, convocou-me a Curitiba, sede da Pastoral da Criança, para
reunião com ela, José Tubino, da FAO, e dom Aloysio Penna, então arcebispo de
Botucatu (SP), que representava a CNBB. Tratamos das mudanças na área social do
governo, em especial da decisão de se acabar com os Comitês Gestores do Fome
Zero, já implantados em cerca de 2 mil municípios, pelos quais a sociedade
civil atuava junto à gestão pública.
Zilda
Arns temia que o Bolsa Família priorizasse a mera transferência de renda,
submetendo-se à orientação que propõe tratar a pobreza com políticas
compensatórias, sem tocar nas estruturas que promovem e asseguram a
desigualdade social.
Acreditava
que as políticas sociais do governo só teriam êxito consolidado ao combinarem
políticas de transferência de renda e mudanças estruturantes, ações
emergenciais e educativas, como qualificação profissional.
Em
artigo que divulgou por ocasião da II Conferência Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional, em Olinda, a criadora da Pastoral da Criança alertou
que a política social “não deve estar sujeita à política econômica. É hora de
mudar esse paradigma. É a política econômica que deve estar sujeita ao combate
à fome e à miséria.”
E
manifestou claramente a sua opinião: “Erradicar os Comitês Gestores seria um
grave erro, por destruir uma capilaridade popular que fortalece o empoderamento
da sociedade civil; (...) por reforçar o poder de prefeitos e vereadores que
nem sempre primam pela ética e lisura no trato com os recursos públicos. O
governo não deve temer a parceria da sociedade civil, representada pelos
Comitês Gestores.”
Seu
apelo não teve eco. Os Comitês Gestores foram erradicados e, assim, a
participação da sociedade civil nas políticas sociais do governo federal.
Apesar de tudo, o ministro Patrus Ananias logrou aprimorar o Bolsa Família e o
índice de redução da miséria absoluta no país, conforme dados recentes do Ipea.
Falta encontrar a porta de saída aos beneficiários, de modo a produzirem a
própria renda.
Legado
Zilda Arns nos deixa, de herança, o exemplo de que é possível mudar o perfil de uma nação com ações comunitárias, voluntárias, enfim, através da mobilização da sociedade civil. Não a mobilização que isenta o poder público de suas responsabilidades ou procura substituí-lo em suas obrigações. As instituições governamentais mantêm parcerias com a Pastoral da Criança e, esta, exige-lhes recursos, participa de comissões e eventos convocados pelo governo, critica-o quando necessário, sem se deixar instrumentalizar por interesses partidários e eleitorais.
Zilda Arns nos deixa, de herança, o exemplo de que é possível mudar o perfil de uma nação com ações comunitárias, voluntárias, enfim, através da mobilização da sociedade civil. Não a mobilização que isenta o poder público de suas responsabilidades ou procura substituí-lo em suas obrigações. As instituições governamentais mantêm parcerias com a Pastoral da Criança e, esta, exige-lhes recursos, participa de comissões e eventos convocados pelo governo, critica-o quando necessário, sem se deixar instrumentalizar por interesses partidários e eleitorais.
“Estou
convencida” – disse ao público que a escutava numa igreja de Porto Príncipe,
pouco antes de falecer sob os escombros de uma igreja no Haiti, de morrer em
decorrência do terremoto – “de que a solução da maioria dos problemas sociais
está relacionada com a redução urgente das desigualdades sociais, a eliminação
da corrupção, a promoção da justiça social, o acesso à saúde e à educação de
qualidade, ajuda mútua financeira e técnica entre as nações, para a preservação
e restauração do meio ambiente.” E acrescentou: “Devemos nos esforçar para que
nossos legisladores elaborem leis e os governos executem políticas públicas que
incentivem a qualidade da educação integral das crianças e saúde, como
prioridade absoluta”, disse ela pouco antes.
O
mesmo ocorre em relação à iniciativa privada. A Pastoral não compactua com
simulacros de responsabilidade social, que mais visam ao marketing que à
promoção humana, porém aceita parcerias se resguardados os princípios éticos e metodológicos
que lhe definem o caráter.
Lembro
que, no início do Fome Zero, a Nestlé decidiu doar uma tonelada de alimentos
para crianças. Houve quem, no Planalto, desconfiasse tratar-se de um presente
de grego; o objetivo da empresa seria encurtar o aleitamento materno ao
acostumar os bebês a ingerir leite em
pó. A suspeita não procedia, o que se comprovou ao sugerirmos
à Nestlé entregar a doação diretamente à Pastoral da Criança.
Zilda
Arns ensinou que, em se tratando de reduzir as causas da pobreza, deve ser a
mais curta possível a distância entre intenção e ação. “A fome é ontem”, dizia
Betinho, o sociólogo Herbert de Souza. E, na contramão daqueles que, cheios de
bons propósitos, quase nada fazem por se enredarem no cipoal das fontes
financiadoras, ela primeiro agia para, em seguida, buscar os recursos.
Fez
da Pastoral da Criança uma extensa e intensa rede de solidariedade. Acreditou
na generosidade e na capacidade das famílias beneficiárias, transformou os
pobres, de objetos da ação social, em sujeitos multiplicadores de pequenas e
capilares iniciativas que produzem grandes e eficientes resultados.
Ela
não repassava dinheiro às famílias atendidas, não fazia promessas, não pedia
atestado de pertença religiosa ou preferência política. Seu objetivo era salvar
vidas precocemente ameaçadas pela injustiça da desigualdade social que marca a
nossa sociedade. Seu lema, a palavra de Jesus segundo o evangelho de João: “Vim
para que todos tenham vida e vida em abundância” (10,10). Soube confiar no
saber popular, na eficácia de recursos domésticos e das práticas tradicionais
que dispensam compras em farmácias e supermercados. Infundiu nos beneficiários
e agentes multiplicadores da Pastoral a convicção de que a emancipação da
pobreza não reside apenas no poder de consumo, mas sobretudo no dever de
solidariedade.
“Como
os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto das árvores e
nas montanhas, longe dos predadores, das ameaças e dos perigos, e mais perto de
Deus, devemos cuidar de nossas crianças como um bem sagrado, promover o
respeito a seus direitos e protegê-las”, declarou Zilda Arns ao encerrar a
última palestra que proferiu, junto ao povo sofrido do Haiti.
O Prêmio Nobel da Paz
merecia esta mulher.
Frei Betto
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