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sábado, 11 de dezembro de 2010

O Rio de Janeiro tem duas guerras


Desde que teve início, a operação realizada nos morros do Rio de Janeiro é uma das únicas coisas que se ouve falar nos jornais. Em pouco tempo o assunto já não valerá mais nada e será descartado pela mídia. Esse comportamento vampiresco dos grandes meios de comunicação é deveras prejudicial ao Brasil, e o caso do Rio é um grande exemplo disso.

Os números de mortos e feridos se amontoam nos jornais – não há novidades, as matérias são quase as mesmas. O dia a dia dos policiais da operação é o mais novo reality show da TV brasileira, e no primeiro dia da ocupação, o Jornal Nacional poderia ter mudado de nome para Big Brother Favela. “A guerra no Rio de Janeiro” é uma das mais repetidas frases de efeito. Mas, afinal, de que guerra que estamos falando?

Desde quando a escravidão foi se tornando insustentável e o capitalismo foi ganhando força,  os pobres e escravos alforriados foram ocupando as margens da cidade e a periferia. O morro também é periferia, mas uma periferia vertical é que são periferias verticais. Falta de escola, emprego, justiça, saúde, e até comida existiram por ali desde sempre. Falta de Estado, de poder público. E como sabemos, se o Estado não assume o poder, alguém vai assumir. No caso dos morros, foi o tráfico quem assumiu uma boa parte.

E não digo traficantes, mas o tráfico mesmo. O traficante, por mais poderoso que pareça, é só mais um fantoche, um soldado que mata e que morre em nome de uma rede invisível maior, que também lava dinheiro, compra políticos, faz tráfico de órgãos, de seres humanos, realiza travessias internacionais com cargas enormes de drogas e armas, e tem sucursais em diversos países. Mas a maior parte do poder na favela foi assumida pela fome, pela ignorância, pelo desemprego e pela doença, que fazem, de longe, mais vítimas que
o tráfico de drogas.

Combater traficantes é isso: aproveitar um momento para entrar no morro, na base de tanques e balas, numa apoteose da violência legitimada. Combater o tráfico é uma outra coisa: num mundo capitalista, o dependente químico é o cliente, a droga é a mercadoria, e o tráfico é o mercado.

Os traficantes são apenas mercadores da droga, e a lei da oferta e procura continua imperando. Dessa forma, enquanto não há saúde e políticas públicas para tratar dependência química, a droga seguirá como uma mercadoria de alta procura e extremamente rentável. A reorganização do tráfico é uma forte pressão feita por diversos segmentos da mesma sociedade que hoje o execra.

Infelizmente  o combate mais importante para a favela até hoje não foi travado pelo Estado. Por mais violenta que seja, a realidade do tráfico de drogas não é capaz de ser mais violenta do que uma criança morrendo de fome, ou o analfabetismo político. Essa guerra está distante de ser enfrentada, e como já dizia o controverso Capitão Nascimento “O único braço do Estado que entra na favela é a polícia”.

Depois da ocupação, alguns agentes de saúde até subiram o morro, mas isso não representa nem o mínimo. Essa munição não faz nem cócega no batalhão da anti-cidadania que assola as favelas. Além do mais, a ‘guerra’ que se vê na TV não foi decretada em combate ao tráfico de drogas, e nem em nome do povo, para que a dignidade ocupe o espaço deixado pela saída dos traficantes.  Sem nenhuma ingenuidade, essa foi uma ocupação ‘pra inglês ver’, literalmente, pois as olimpíadas e copa do mundo estão quase chegando, e mais próxima ainda está a consagrada virada de ano no Rio, quando a cidade enche de turistas, turistas que não pensarão duas vezes em mudar de destino caso se sintam inseguros. Além da bandeira do Brasil e do estado do Rio, hasteadas no cume do morro, deveria ter sido hasteada em um mastro mais alto a bandeira verde com um cifrão bem robusto no meio. Dinheiro, capitalismo. Os grandes comandantes dessa guerra.

Quando o Big Brother Favela perder a graça, a mídia vai jogar fora esse assunto. Justo no momento de mais importância: o de ver o que ocupará o lugar dos traficantes no morro. E agora, sem o sangue jorrando ladeira abaixo, sem a visibilidade do tráfico que invadia até o lugar das elites com suas drogas, quadrilhas organizadas e bem equipadas, que visibilidade vai ter aquela população da favela, que agora não tem voz para chorar sua dor nem com gritos de bombas e tiros? Pelo visto, a verdadeira guerra não será televisionada.

Assistente social e escreve também no blog:
www.cartadesmarcada.blogspot.com

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