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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

UMA QUESTÃO DE DIREITO E DE EDUCAÇÃO - Dom Mauro Morelli


Anualmente, nesta data, a Organização das Nações Unidas para o Alimento e a Agricultura, promove o Dia Mundial da Alimentação.

Neste ano somos convocados a caminhar “Unidos contra a Fome”. Quem sabe para recuperar o tempo perdido e, assim, atingir o compromisso da Cúpula Mundial da Alimentação (Roma-1996) de reduzir pela metade, até 2015, o número de seres humanos dizimados ou desfigurados pela fome. Na época, oitocentos milhões; hoje em todo o mundo o número de famintos oscila em torno de um bilhão!

 A questão da alimentação e da nutrição do povo brasileiro deveria ser tema prioritário para a nossa decisão, em segundo turno, ao eleger quem vai governar e presidir a Nação.

Alimento é vida! Sem oxigênio e água, sem ternura e leite materno, sem pão e vinho, sem outros frutos da terra e do trabalho humano, a vida desfalece e os dias cessam.

O Papa Bento XVI, na encíclica “Caridade na Verdade” (2009), ajuda-nos a entender que não se trata de caridade e de assistência social, mas de um direito humano básico que exige mudanças não só de hábitos alimentares, mas do próprio modelo de desenvolvimento. Portanto, uma questão de direito e de educação. Para a Igreja, a exclusão social que leva o ser humano a definhar e morrer por falta de acesso ao alimento, é problema ético.

Segundo Bento XVI, a resposta coerente com a realidade iluminada pela Fé nos leva a contribuir para salvar a vida da Terra e a construção da paz. Alimento é caminho da paz. Neste milênio os conflitos se anunciam pelo controle dos recursos naturais. Com um bilhão de famintos no mundo não podemos sonhar com a paz.

Assim, pois, neste início de milênio, torna-se urgente o anúncio do Reino de Deus, do sentido e destino da criação e da vocação à vida em comunhão, através de testemunho, diálogo e compromisso com a preservação das fontes da vida e promoção do direito humano ao alimento e à nutrição. Grande desafio, a motivação e formação da juventude para levantar e a caminhar em busca de uma terra livre dos males da miséria e da fome.  A sociedade que cultiva a justiça e partilha o pão através de uma economia solidária, não convive com famintos e necessitados.

No Brasil, além das condições e recursos necessários, dispomos de precioso instrumento para atingir o compromisso com a superação do quadro vergonhoso da exclusão social e dos males da fome. Refiro-me à Lei Federal 11.947/2009, que dispõe sobre o Programa de Alimentação Escolar, por sinal, a melhor contribuição do Governo Lula para os objetivos da “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”. Uma expressão que brotou do coração inteligente do saudoso Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida em reunião do Movimento pela Ética na Política, após o impeachment do presidente Collor (1992). Naquela ocasião, a concentração de renda e o quadro escandaloso de famintos (32.000.000), resultantes do modelo de desenvolvimento imposto ao país pelo Golpe de Estado (1964), foram apontados como as formas mais perversas de corrupção em nosso país.

Sem dúvida, graças à ação da família, da sociedade e dos governos, houve avanço significativo na redução da miséria e dos males da fome através de iniciativas solidárias e de programas de assistência social, tais como Bolsa Família; contudo, não se deve ignorar, que a insegurança alimentar e nutricional, segundo estudos do IBGE e IPEA, paira sobre milhões de lares brasileiros. O problema é maior e mais sério do que se admite, por causa de alimentação insuficiente e/ou inadequada e pelo grau de envenenamento dos alimentos.

Apregoa-se o continuísmo ou a continuidade, quando precisamos de humildade, sabedoria, coragem e ousadia para uma nova e decisiva arrancada. No substantivo, as propostas se igualam; divergem, nos qualificativos e nas alianças.

Impressionou-me o testemunho e o compromisso do Presidente Chileno Sebastian Piñera ao concluir a operação de resgate dos mineiros soterrados durante setenta dias. Afirmou que é dever e tarefa prioritária dos governantes investir em todas as áreas do trabalho humano para garantir a segurança e a valorização do trabalho, a fim de que os trabalhadores possam viver com dignidade e esperança.

Agora é hora de descer do palanque e demonstrar competência e compromisso. Discussões e polêmicas insensatas, delirantes e hipócritas impedem o debate sobre as primeiras e fundamentais exigências do bem comum.

No processo eleitoral, números e dados estatísticos atordoam, mas nada provam. A estatística é verdadeira quando a realidade pesquisada tem rosto, nome e endereço. A estatística é justa quando fundamenta a resposta do governante às demandas e exigências da cidadania.

Em 1963, por ocasião do 1º Congresso Mundial do Alimento, o Presidente J.F.Kennedy afirmava: “Temos os meios e recursos para eliminar a fome da face da terra. Só nos falta vontade”!

Começando com as religiões, quem não tiver pecado, atire a primeira pedra! A crise que atravessamos é mais profunda e abrangente do que gostaríamos de imaginar. Parafraseando o profeta Jeremias (c14), a violência corre solta no campo, a miséria e a fome torturam a cidade. Até os sacerdotes, pastores e levitas, como baratas tontas, perambulam sem entender o que está acontecendo.

Trata-se de uma crise provocada pelo esgotamento de nossa civilização. Vivemos em sociedades excludentes e abortivas! Degradação ambiental, violência, autoritarismo, machismo, são marcas características de uma civilização guerreira e destruidora da vida.

A nova lei, embora mutilada, aponta o caminho de transformação dessa realidade iníqua e blasfema através de um novo projeto de desenvolvimento em que educação, de um lado, e, do outro, produção, processamento, preparo e consumo de alimentos saudáveis, adequados e solidários, a partir de cada micro região ou bacia, serão os principais instrumentos para combater o êxodo rural, a exclusão social e os males da miséria e da fome. Pensar e planejar o desenvolvimento do país debaixo para cima e de maneira descentralizada.

 Tratando-se de uma Política de Estado, bem que até 2025 poderíamos planejar o surgimento de um Brasil justo, solidário, saudável e inteligente, como exigência da democracia, de per si incompatível com miséria e fome. Nossas crianças e famílias merecem um projeto econômico de produção e consumo de alimentos saudáveis, adequados e solidários, ou seja, uma nova ordem econômica com mercado justo e solidário que não transforme alimento em moeda. A partir da nova lei que dispõe sobre o programa de alimentação escolar, com recursos de fundo constitucional, moeda produzirá comida! O novo modelo de desenvolvimento vai exigir que outro seja o lastro da Balança Comercial. Jamais, o alimento!

Segundo expressão popular, saco vazio não para em pé. Criança faminta não cresce em sabedoria. Esfrega a carteira escolar percorrendo com o olhar o espaço vazio de sonhos e de festas. Não há modernidade que resista à fome de uma criança.

Sentir fome é um processo saudável quando se tem acesso à comida de boa qualidade e abundante.

Para que a criança possa efetivamente se educar precisa de carinho da família, de um lugar em volta da mesa e de uma casa que lhe ofereça privacidade e salubridade.

E a escola que a acolhe? Até hoje contemplo com orgulho o grupo escolar que me acolheu na minha infância e me lembro com profundo respeito das nossas professoras. Assim como a igreja de minha terra, o grupo escolar era para mim o templo da sabedoria. Quase uma igreja!

Com votos e preces de Paz e Bem, caminhemos a fim de que nenhuma criança morra criança por causa da miséria e dos males da fome (Isaías 65).

Dom Mauro Morelli
Bispo Emérito da Diocese de Duque de Caxias
Indaiatuba, SP, 16 de Outubro de 2010

Obs: Artigo enviado, através de email, por minha amiga Carmem  Lúcia Costa


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